sábado, 27 de março de 2010

A rua


Fiquei pensando no menino guardado na grade...
Todos os dias sua mãe o lavava, penteava, deixava cheiroso. O menino mais limpinho de toda redondeza.
Pele clara, cabelos brilhantes, roupa impecável, unhas alvas.
E os olhos?
Olhos frios, tristes, enfumaçados, quase mortos.
Não tinha viço nem a alegria comum aos garotos de sua idade.
Todos os dias na volta da aula a mãe corrigia-lhe de alto a baixo. Indagava cada detalhe que o pudesse ter sujado naquele dia escolar.
Na outra manhã sempre as mesmas exigências: não sente ali, não pise acolá, não coma daquele jeito.
Os outros meninos não entendiam o porquê de suas negativas aos convites para pular, nadar, correr, esgueira-se pelos becos sujos no caminho da escola.
Chamavam-no fraco, medroso, filhinho da mamãe.
E seus olhos seguiam incolores.
Sempre guardado naquelas grades enormes, pintadas de amarelo ouro. Uma prisão dourada.
Num silêncio que eu ouvia do outro lado da rua, eu podia quase ouvir seus gritos de querer ser menino.
Aproximei-me e perguntei: por que não brinca aqui fora um pouco?
O menino, trazendo quase uma luz naqueles olhos cinzentos respondeu-me: Sabe, esse é meu sonho mais secreto, brincar na rua. Mas minha mãe não deixa. Ela diz que o seguro é ficar aqui.
Mamãe não sabe que a felicidade às vezes mora na rua.

Palavras


Palavras são preciosas

como um bom e velho vinho

eu as tenho aqui dentro de mim desde sempre

nunca as dei (totalmente) a ninguém.

São como cristais delicados

que a velha senhora não deixa ninguém usar por medo de quebrar

e assim nunca são verdadeiramente usufruídos, usados, absorvidos.

As minhas palavras quase sempre são leves, mas em contrapartida carregadas dos sentimentos mais intensos e controversos.

Elas desejam expressar cada centímetro de experiência vivida,

anseiam revelar os segredos aqui dentro guardados,

sofrem por não poderem contar o que lêem aqui e ali.

Mas quando nascem, vem assim, carregadas de sabor.

Infância

Numa noite quente de verão uns noivos casam-se por pura paixão.
Eu observava toda aquela liturgia ora sagrada ora teatral.
Em certo momento meus olhos param numa criatura lindíssima. Morena, pele jovem, firme, viva.
Os mesmos cabelos longos e negros da infância. Os mesmos olhos festivos e o sorriso de boneca.
Linda, acompanhada do esposo e dos filhos.
Em minha memória um filme de longos anos passados.
Ela era a menina mais bonita da escola. Aquela que os meninos amam e as meninas querem ser "melhores amigas".
Tinha outra, essa possuia toda uma coleção dos contos maravilhosos: Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho... eram exemplares magicamente coloridos que nos encantavam todas as tardes daquela infância tão distante.
Mas a menina mais linda eu nunca me esqueci, pois essa povoava minha lembrança de uma beleza morena. De algo quase surreal. Não a vi crescer. Não cultivamos a amizade nascida no começo da vida. Mas revê-la me fez passear por vielas abandonadas há muito.